Quantas vidas cabem numa só vida? Já reparou que vivemos, morremos e renascemos inúmeras vezes? Ciclos se iniciam, ciclos se finalizam, surgem outros, se renovam mais alguns.
O mesmo acontece nas relações, nos encontros entre dois seres que estão vivendo cada qual os seus próprios ciclos, mortes, renascimentos e renovações constantes. Quantas histórias cabem num mesmo amor? Do encantamento inicial aos conflitos e reencaixes cotidianos, passamos por diversas transformações, muitas delas invisíveis, porque nem sempre nos atentamos para o fato de que nós estamos em constante mutação.
O que pode acontecer quando nos propomos ir além da idealização romântica das relações amorosas? Vamos nos aprofundar e refletir juntos.
A vida-morte-vida no amor
Um dos meus livros preferidos é o “Mulheres que correm com os lobos”, da analista junguiana e contadora de histórias Clarissa Pinkola Estés. Nele estão reunidos 19 contos e lendas de diversas culturas, falando sobre múltiplos aspectos da experiência e da alma feminina.
Um dos contos que mais me toca o coração é o da Mulher Esqueleto, que explora exatamente essa natureza de vida-morte-vida do amor.
No conto, a Clarissa fala do amor para além do ideal romântico, como uma jornada em que a união das pessoas numa relação potencializa a força para entrar em contato com o mundo da alma, do significado, da vida-morte-vida, criando uma verdadeira parceria pra seguir junto.
Numa só relação vivemos diversos inícios e diversos fins, e mesmo se houver um término definitivo daquela união, ainda assim, se abrem novos ciclos para cada um dos envolvidos.
Resistimos a todas as manifestações da morte no amor, tememos a morte das ilusões e expectativas superficiais, a morte de como as emoções iniciais se manifestam. Desejamos que tudo seja somente lindo, prazeroso e brilhante. Temos pavor das mortes, porque fomos ensinados assim e acreditamos que depois de qualquer fim vem sempre mais morte, dor e vazio. Mas o que a natureza mostra o tempo todo é que os ciclos se renovam, depois do inverno vem a primavera, depois da lua minguante a lua nova, a semente enterrada se torna broto, e por aí vai.
Você tem fome de quê?
“Um mundo desalmado estimula cada vez maior rapidez na procura desenfreada daquele único filamento que parece ser aquele que arderá imediatamente e para sempre. No entanto, o milagre que estamos procurando leva tempo: tempo para encontrá-lo, tempo para trazê-lo à vida.”
(Clarissa Pinkola Estés, em “Mulheres que correm com os lobos”)
No ideal romântico, não há a noção de relação como plantio e cultivo. Há essa urgência que nasce de uma fome de alma, com o que escolhemos não lidar. Fica, então, só a urgência e uma fome que nunca se sacia. De um outro que nos complete. De uma história que nos salve. De um sentido que venha milagrosamente mudar tudo pra sempre.
Queremos vida sem fim, paixão perpétua, amor eterno. E, por isso, nos sentimos tão perdidos e atormentados diante do amor. Porque idealizamos, mas na prática ele não funciona dessa forma.
Não há essa contenção e esse controle, nada nele é hermeticamente fechado. É cultivo, é lavoura. É você vindo com sua bagagem e visão de mundo, seus sonhos e vontades, indefinições e questões, o outro chegando também com tudo isso, enquanto acontece o encontro.
Dois universos entrando em colisão, gerando explosões e novas estrelas. Se entendo que há um encontro entre duas forças vivas, em constante expansão, implosão e mutação, ah, aí a magia acontece e podemos começar a arar a terra!
Um novo olhar sobre relacionamentos
Quanto mais inteiros estamos, mais podemos nos entregar à experiência plena do amor. E quando digo inteiro, não estou dizendo perfeito, acabado, invariável. Estou falando de sentir que sou um, que não sou metade. Se me sinto inteira, mesmo com meus vazios e interrogações, posso encarar o outro também como um ser inteiro, e juntos seguimos compartilhando a estrada.
E se as nossas estradas deixam de se cruzar em algum ponto, seguimos ainda inteiros, mesmo com machucados, dores e outros vazios. Mas também com sementes e aberturas, porque a vida carrega tudo isso junto. Não é?
A partir dessa compreensão de que somos seres inteiros que compartilham a vida, em seus fluxos e refluxos, com todas as curvas de estrada, inícios, finais, reinícios, criamos a possibilidade de um amor pra se viver.
E, curiosamente, olhar para esses elementos, que não são belos em princípio, até nos faz recuperar um olhar de surpresa e admiração. Passo a ver esse outro como um ser rico em nuances, que por mais que eu já o conheça, sempre algo pode se revelar, porque ninguém chega a uma versão permanente. O outro está vivo, eu não o congelo, e passo a enxergar seu movimento vivendo suas próprias estações, mortes, renascimentos e possibilidades.
Começa o nosso trabalho bonito e profundo. Encarar que o amor é bem mais potente, transformador, incrível e poderoso do que qualquer idealização romântica, que pode haver entusiasmo frente ao exercício de reconhecer nossas vulnerabilidades e potenciais, tudo que é do humano. Encarar o não-belo e ver a beleza disso.
A Clarissa diz que “o amor tem seu custo, ele exige coragem.” Coragem, colocar o coração na ação. Aceitamos o desafio? Espero que possamos dizer sim, porque se trata de dizer sim para o caminho que se abre sempre que aceitamos superar nossas fronteiras criadas e imaginadas. É bancar dizer sim pra jornada.
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Artigo publicado na minha coluna no Portal Personare.
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Para quem quer mergulhar na leitura de Mulheres que Correm com os Lobos, eu facilito um grupo de estudos e aprofundamento. Veja as informações aqui.